É um privilégio poder escutar um dos protagonistas da arte do nosso tempo, criador de um movimento que influenciou os rumos da figuração contemporânea que libertou de todos os preconceitos de submissão às aparências, numa visão intercultural integradora de vertentes emblemáticas da cultura do nosso tempo e de uma vivência urbana, como a banda- desenhada, os graffiti, a ficção científica, a cultura pop e rock a que se juntam a cultura popular, os desenhos infantis.
Como poderá definir na primeira pessoa, o movimento “figuration libre” que fundou nos anos 80 com Hervé Di Rosa, Ben e outros artistas?
Foi o artista Ben quem encontrou o nome Figuração Livre. Correspondia à pintura que fazíamos. Éramos jovens marginais que gostavam de rock, do underground, das culturas populares, da arte bruta, da revista Harakiri... Vínhamos de Sète, de meios populares. No final dos anos 70, com Hervé Di Rosa e Ketty Brindel, criámos a revista BATO - "revista de arte assemblagista feita à mão, 100 exemplares" - que reunia vários participantes e revelava o nosso gosto pelo absurdo, pelo desfasado, pelo mal desenhado, mal pintado. Em paralelo, criei o grupo musical Les Démodés com a Ketty Brindel e o Richard Di Rosa, conhecido por "Buddy". Esse grupo era também, para mim, um manifesto desta criação livre. Não éramos músicos, mas isso não nos impediu de fazer música. Quisemos impor os nossos defeitos sem complexos, para que se tornassem qualidades. Isso é um pouco o que é a Figuração Livre: fazer com o que se tem, que naquela altura era muito pouco, mas fazê-lo com seriedade, muito trabalho e ambição.

Robert Combas, "O sonho Paraíso + Pesadelo", 1988, acrílico s/ tela, 198 x 148 cm
Foram-lhe atribuídas diversas influências como a dos artistas americanos Keith Haring e Jean-Michel Basquiat, que em dado momento contesta. Quais são as suas assumidas influências, se as tem, na pintura ou na literatura? O que nos dizem a esse respeito as suas homenagens a Matisse e Toulouse-Lautrec ou a referência a Van Gogh? De onde vem o seu muito pessoal e muito original sistema de representação?
Como é que podemos ser influenciados por artistas que apareceram depois de nós? Em 1980, terminei o meu diploma em Saint-Étienne. Bernard Ceysson, então diretor do museu de Saint-Étienne, reparou em mim e propôs-me participar, no outono de 1980, na exposição “Après le classicisme”, que apresentava os movimentos emergentes de regresso à figuração na Alemanha, Itália, França e EUA. Eram mostrados artistas como David Salle, Francesco Clemente, Julian Schnabel... Keith Haring ou Jean-Michel Basquiat ainda não tinham aparecido! Mesmo as instituições, que deveriam zelar pela verdade histórica, contribuíram para que fôssemos vistos como versões menores dos americanos - é algo que nos custa bastante. Tínhamos, com esses pintores graffiti americanos, preocupações comuns como a música, a relação com o público, a dessacralização da arte, a droga (hoje podemos dizê-lo) ... Em França, não conseguimos competir com a força económica da América, e o fenómeno do rap foi associado a essa pintura americana. Eles foram estrelas cadentes, morreram muito jovens, como ícones. Nós tivemos de viver, durar, aprender a envelhecer. E não é fácil envelhecer com a nossa pintura. Os outros pintores que refere são mestres maiores, aos quais presto homenagem com exposições ou quadros, mas com os quais não me comparo.
A minha pintura é rock, já o disse e continuo a dizê-lo.
Sempre privilegiou a sua relação com a música, chegou a afirmar "ma peinture, c'est du rock" e lembremos a este respeito o título da sua exposição em 2012 no Museu de Lyon: Greatest Hits. Como é que essa paixão pela música se reflete na sua obra?
A minha pintura é rock, já o disse e continuo a dizê-lo. A minha pintura é livre, é muito raro fazer esboços preparatórios, não sei para onde vou, há muita improvisação, mas parto de uma boa base rítmica, que vem da minha energia e do meu ofício, e de uma linha melódica, que é a narrativa. Penso poder dizer, sem pretensão, que sou o pintor que tratou mais temas diferentes (sagrados, triviais, imaginários, históricos...). Desde o início dos anos 2010, continuo a tocar música com o meu grupo de rock e performances visuais Les Sans Pattes (com Lucas Mancione, e mais recentemente com Lionel Martin, Marc Duran e Olivier Chambriard). Música e pintura misturam-se totalmente nestas performances, onde imagens dos meus quadros são projetadas no palco e nos nossos corpos.

Robert Combas, "O Arcanjo - Aquele que derrotou o dragão do Apocalipse e lançou Lúcifer à Terra", 1995, acrílico s/ tela, 210 x 127 cm
Na sua arte é unanimemente considerado o grande vínculo a um espaço urbano. Como definiria a sua relação com a natureza?
Não há regras. A minha pintura vem mais de influências urbanas, da sociedade, mas não sou um street artist. Entrei na escola de Belas-Artes com nove anos, em Sète, e saí de lá com o meu diploma aos 23. Levámos a arte para a rua, mas não pintámos na rua. Da mesma forma, gosto da arte bruta, sinto-me próximo dela na forma como sou artista, mas não sou um artista da arte bruta. Pinto flores e animais desde sempre. E mais ainda desde que vivo sobretudo em Sète - isso remonta ao início dos anos 2010. Porque o jardim à volta da minha casa e do meu ateliê é luxuriante. Essa profusão de flores junta-se à profusão de armas e de choques das minhas batalhas. Mas também à profusão dos sexos femininos: pétalas, pistilos, sépalas, estames... Guerra e Amor.
Qual o sentido da evolução da sua obra, desde as séries iniciais, "Battles" de 1977, Mickey Mouse e "Arab Pop Art", passando por obras tão notáveis como Le Fakir (1982, Museu de Arte de Toulon), Le Phoenix Contemporain (1989), ou O Arcanjo (2010)? Ou seja, para onde se encaminham o seu estilo e a sua visão do mundo?
A minha pintura evolui e “desevolui” ao mesmo tempo. Quando começo um quadro, tenho a impressão de me ter esquecido de tudo e já não saber fazer nada. Todos os temas me interessam, sem hierarquias. Tudo pode ser tema de pintura. Gostava de encontrar novos caminhos, não me deixar aprisionar pelo contorno negro que é a minha marca. Tenho ainda a esperança de conseguir.
É uma natureza-morta-viva. A violência está presente porque tudo o que podemos pensar ser belo e pacífico é ameaçador ou está ameaçado.
No contexto muito particular da sua pintura, o que pensa captar nas suas imagens?
O meu amigo Michel Onfray escreveu, no livro "Un chaman nommé Combas", que eu era um sismógrafo. Gosto dessa definição. Acho que capto sensações, intuições, emoções, pulsações que precisam de ser traduzidas nos meus quadros.
A guerra é um tema recorrente na sua pintura. Pode explicar-nos porquê?
O amor é central na minha obra e na minha vida. Sinto-me próximo do romantismo, mesmo que isso surpreenda. E pinto batalhas desde sempre porque a guerra está sempre presente em algum lado. E, para um pintor, a batalha é um tema completo: é vida e morte, o corpo, o medo, a crueldade, o sofrimento... Também é uma forma de confrontar a história, a pintura histórica, a história da arte. A minha pintura foi-se tornando mais complexa com o tempo, não é binária, tudo se mistura e entrelaça. Tenho também um verdadeiro gosto pelos detalhes, os trajes, as armas, as armaduras, os ornamentos. O tema da batalha é perfeito para a minha pintura.

EDIÇÃO CPS
Robert Combas, "A festa dos frutos. Três peras, uma melancia e uma caixa de madeira! A cabeça de madeira partiu um dente ao comer amêndoas amargas", Serigrafia, 56 x 69 cm, Edição de 100 exemplares, 2025
Na arte já tudo foi explorado? O que lhe falta a si fazer e dizer?
Não sei o que resta dizer na arte. Há artes que permanecem, outras que se esquecem rapidamente. Não somos nós que decidimos. Continuo a ser um homem do século XX, não gosto deste mundo digital. Procuro manter-me fiel a mim mesmo, com os poucos meios que tenho, continuar a trabalhar e a ser honesto.
Qual é para si o sentido da distinção abstração figuração e da entrada na criação artística do universo digital?
Não acredito mais na figuração do que na abstração. O que conta é a força das obras. Com as novas tecnologias, toda a gente vai querer tornar-se artista. É uma profissão com futuro.
A sua pintura tem a lógica de um universo construído apesar da sensação de caos que por vezes nos comunica. Concorda?
A minha pintura não é sempre um caos. Faço questão de dar um título a cada obra - como quem tenta deixar ali uma pista, uma sugestão poética.
A sua atual edição para o Centro Português de Serigrafia poderá representar um passo para a sua aproximação com o nosso País?
É uma natureza-morta viva. A violência está presente porque tudo o que podemos pensar ser belo e pacífico é ameaçador ou está ameaçado.
Esta colaboração com o maior editor de arte do nosso país poderá abrir caminho para uma maior proximidade com a cultura portuguesa?
Sinto-me um homem do Sul. A minha pintura parte da cor, dos contrastes. É humana. Fala sobre os humanos. Aproxima-me dos humanos. Pode falar a toda a gente.
Fotografia do artista: Geneviéve Combas