Pedro Cabrita Reis
Dez. 6, 2023

Pedro Cabrita Reis

Entrevista por Rafael Prates

Pedro Cabrita Reis é um nome incontornável da arte contemporânea. Vencendo fronteiras, as suas obras, e a sua fundamentação, são já história. Exclusivamente para serigrafia, o artista desenvolveu um conjunto de seis projetos, que definem a série Flores de Cacto. Por sugestão do artista, foi entrevistado pelo jovem Rafael Prates, que resultou numa boa e clarificadora conversa no seu atelier.

 

Hoje é dia 20 de novembro de 2023. E este registo é de uma conversa no meu ateliê pelas 18h00, 19h00 quase, com o Rafael Prates, no contexto de um projecto de serigrafias que eu estou a fazer para o CPS. Esta conversa destina-se a integrar uma publicação [Revista arte #38] em torno destas serigrafias, a produzir pelo Centro Português de Serigrafia. Olá Rafael, boa tarde. Vamos então.

 

Vamos lá! Pedro, sempre tiveste uma obra muito diversa. Desde esculturas com um caráter muito industrial que já expuseste em museus por todo o mundo, aos cactos que nos apresentas aqui com umas flores lindíssimas. Como concilias esta heterogeneidade?

Ao longo da minha vida fui sempre fazendo e sempre tendo uma prática multidisciplinar, portanto, da pintura ao desenho, da escultura, etc. Além dessa multidisciplinaridade técnica, do ponto de vista temático ou conceptual, sempre fui, de uma forma ou de outra, produzindo obras que se acompanhavam umas às outras, sendo certo que umas vinham de uma qualquer presunção de natureza. Passavam também pela representação do retrato e iam para outros lados como, conforme acabaste de dizer, objetos de caráter mais industrial, mais construtivo. Foi uma liberdade que sempre me outorguei. Outorguei-me a liberdade de fazer sempre o que queria. E um artista deve ter em relação ao mundo que o rodeia- e do qual ele faz parte, uma abertura total no sentido de absorver todas as informações que ele vai colhendo pelo seu olhar. Nunca se pode imaginar, ou pelo menos eu não imagino, que um artista tenha uma fonte exclusiva, unidirecional e particular, que dá enfoque e dá forma à sua arte. O artista está vivo, é sujeito a um conjunto de sugestões, de estímulos, de propostas, de momentos, e transforma essa imensa variedade de momentos na sua obra. Provavelmente alguns artistas escolhem dessa variedade de estímulos um conjunto muito específico e é a partir daí que desenham aquilo que é o seu processo criativo: legítimo. Eu uso tudo, faço tudo, acompanho tudo. E, na verdade, na minha obra há uma espécie de um retrato do mundo. Ou seja, toda a minha obra é um objeto de reconstrução do mundo em todas as variantes que esse mundo me oferece. Tão depressa pinto uma árvore como faço uma escultura que é um cubo preto.

 

Seis serigrafias distintas formam a série "Flores de Cacto" que marca a estreia editorial do artista no CPS.

 

Apesar dessa tua interação com a realidade que te rodeia, e especialmente em comparação com a realidade humana e construída, a tua relação com a Natureza é algo mais particular.

Devo dizer-te que por um lado existem várias afirmações minhas em termos programáticos, plasmadas em textos, em entrevistas, em artigos dos media, onde eu dizia que a natureza não era parte das minhas preocupações. E ao mesmo tempo, e aparentemente em contradição com isso, sim, eu toda a vida fiz representações, interpretações, variações, modificações, reconstruções daquilo que seria uma hipotética relação minha com a natureza. É curiosa esta contradição que se constrói de afirmações de caráter, digamos, programático. Palavras que depois, na prática, acabam por ser objeto de uma confrontação com outra prática, que é a prática da criação artística. Sempre pintei flores, árvores, florestas, paisagens, etc. Poder-se-á perguntar: Bom, então afinal a natureza é importante ou não é importante? Fazes obras que se baseiam na natureza ao mesmo tempo que rejeitas a tua ligação com a natureza?

Eu diria que a explicação, se é que há explicações, ou a motivação para esta aparente contradição, não é de todo em todo complexa. Uma coisa é a afirmação de que a natureza não é importante como momento ou como detonador de uma prática artística. Isto não invalida, e até de alguma forma complementa, que toda a natureza que eu represento nos meus desenhos, nas minhas pinturas, nas minhas esculturas, é uma natureza que vem apenas e exclusivamente do pensamento. Não é uma natureza que está imbuída de narratividade formal ou física. Portanto, eu posso dizer, por um lado, que a natureza não me interessa como conceito ou como ponto de partida filosófico. E na mesma frase posso dizer: a natureza, ou aquilo que nós dela apreendemos, interessa-me como motivo plástico, sabendo que tudo aquilo que me interessa como motivo plástico e que dá origem a obras que eu faço nas mais diversas disciplinas, é uma natureza que é, nem sei se te poderia dizer, abstrata. É uma natureza que só existe no meu pensamento. É evidente que todos nós temos memórias. Todos nós partimos de imagens do conhecido. Todos nós olhamos para as paisagens, para o mar, para as árvores, para as serras, e todos nós extraímos daí uma fonte de ação. Um manancial de criatividade, se quiseres. Agora esse manancial de criatividade que chega às obras que eu faço não é de forma alguma relacionável em direto, só por indução, com o que eu vejo. Ou seja, eu não faço parte de qualquer Escola de Barbizon, que é a escola que leva, digamos, à prática do impressionismo. Para mim, a natureza que eu represento nos meus quadros é uma natureza que existe única e exclusivamente no meu pensamento. Tudo aquilo que essa natureza do meu pensamento possa ter da dita “natureza natural”, ou seja, aquela que nós conhecemos da nossa experiência visual, ótica e comportamental, são apenas sintomas, sinais, e depois é tudo transformado através do meu pensamento criativo, enquanto artista, em algo totalmente diferente. Portanto, eu posso, de um lado, dizer que a natureza não me interessa e posso, do outro lado, fazer uma natureza que me interessa.

 

E nesta série de sinais que recebeste, quais consideras que poderão ter tido um papel catalisador mais importante na criação destas “Flores de Cacto" para nós e para os nossos Sócios?

Eu partilho o meu tempo entre Lisboa e o meu outro ateliê, outra casa, que tenho no campo, no Algarve, na serra, em Tavira. E nesse sítio, uma das coisas que mais me fascina é justamente plantar árvores, plantar cactos, etc. Ou seja, eu tenho essa parte da minha vida, que é muito importante para mim. Eu tenho uma ligação muito forte à terra e à natureza no sentido de uma natureza construída. Faço jardins, faço vinhas, faço plantações de laranjas, figos, etc. Essa minha trajetória, essa parte da minha vida, é, tal como outras, um manancial de energia criativa. Eu não tenho um jardim de flores na minha casa. Tenho um jardim apenas composto por cactos. Cactos esses, que claro, como todos os cactos, dão flores. Mas não tenho um jardim de flores, tal como as pessoas poderiam à primeira vista imaginar. Gosto muito de cactos. Gosto da resiliência do cacto. Uma planta que resiste. Uma planta que suporta dificuldades de toda a natureza. Que permanece. Tem uma força de resistência que continua a despeito das condições serem agrestes. O cacto é, de alguma forma, se quiseres, até poeticamente considerada, uma representação muito bonita, plena e profunda daquilo que é a presença do humano na natureza. Resistir, continuar, adaptar-se, viver do pouco que há e ainda assim persistir. Os cactos interessam-me e estão presentes na minha obra. E quando o Centro Português de Serigrafia, na figura dos irmãos António e João Prates, me convidaram para fazer esta série de seis serigrafias, eu voltei àquilo que gosto. Achei que o mais interessante para começarmos uma boa relação de trabalho, que espero que se desenvolva no futuro, era começar por uma base que me era cara, que me interessava. E essa base era o quê? Era retrabalhar a questão do cacto como uma figura identitária importante para mim. Daí até fazer estas flores de cacto foi, enfim, um momento brevíssimo, foi uma iluminação. E decidi que o mais interessante era desenvolver ao longo destes seis originais para serigrafia esse meu encanto pelos cactos. Essa série “Flores de Cactos” originou-se daí.

 

Série essa que adornaste com cores de uma presença hegemónica, até marcadas no título de cada uma das obras. Que importância têm estas cores aqui?

Rafael, eu, em termos genéricos, mas ao mesmo tempo absolutos, sou um artista. Não sou um escultor, nem um pintor, nem um desenhador, sou um artista. E o que é que é um artista, além de tudo aquilo que as pessoas sabem que é um artista? No meu caso, entendo-me como artista no sentido em que sou alguém que não tem limitações de ordem disciplinar ou técnica. Na verdade, faço tudo aquilo que me apetece e da maneira que me apetece e não o faria de outra maneira. E, contudo, ao ser assim, aberto e livre, tenho a responsabilidade de absorver todas as formas, todas as práticas e todas as maneiras de fazer. Enquanto pintor, o que determina um exercício de uma pintura, independentemente da temática, da motivação ou do desenho, da narratividade da pintura, dos seus objetivos éticos ou outros, é o exercício em torno da cor. A cor é, em último grau, aquilo que a pintura é na verdade. E a cor pode ser usada e deve ser usada para construir na pintura, na tela ou onde queiras, aquilo que é o teu programa de intenções em relação ao que te motiva para fazer essa pintura. Mas a cor é sempre determinante. É a partir do domínio da cor que podes imaginar fazer um retrato, fazer uma pintura, fazer uma paisagem, fazer o que quiseres, uma natureza morta. Ou até, porque não, uma pintura abstrata, minimalista, ou outras quaisquer. A serigrafia é uma técnica e uma disciplina que requer um determinado dispositivo mental e criativo, que inclui, tendo em conta aquilo que é a natureza e o objeto da serigrafia, a utilização da cor de uma forma, como eu diria, clara, forte e propositiva. A serigrafia, como sabemos, é uma técnica em que a aplicação das cores em sucessivas camadas é feita de uma forma plana. A serigrafia não permite, pelos seus princípios técnicos, a existência de nuances cromáticas. Quer dizer, mesmo que o permita, são sempre, de alguma maneira, pequenos arranjos, digamos, de técnica, que a meu ver não validam aquilo que é a qualidade original e forte da serigrafia. A serigrafia, no meu caso pessoal, vive, acima de tudo, de uma construção brilhante e plana e clara de áreas de cor, no sentido de transformar o objeto serigráfico num objeto que possa ser o sintoma das preocupações em relação àquilo que se está a fazer. Uma aguarela tem outras formas de ser feita. A aguarela permite-te nuances, transparências e tudo isso. O óleo é outra coisa. A serigrafia claramente é uma linguagem de imediatez, de claridade e de força de cor. Portanto, as serigrafias que fiz para o Centro Português de Serigrafia, tinham que ter essa qualidade.

 

As obras são limitadas a apenas 74 exemplares numerados e assinados. Atelier do artista, nov. 2023.

 

Mas apesar da força destas cores que protagonizam as serigrafias, elas encontram-se quase que cortadas por linhas negras que dividem o plano da obra. A que se devem estas linhas?

Estas linhas, na verdade, desempenham um papel essencial na composição. Não são meramente decorativas ou acidentais. No entanto, concorrentemente, podem ter uma variedade de significados ou interpretações atribuídas.

Podem ser um contraste deliberado com as cores vibrantes que dominam a composição. Contraste esse que representa acima de tudo uma metáfora visual a muitos níveis. Pode ser, por exemplo, a tensão entre a natureza e a intervenção humana. O negro das fitas simbolizando a presença do humano, a sua capacidade de ordenar, estruturar, e sobrepor-se à força da natureza. Em contraposição, as cores vivas representam o espírito espontâneo da natureza, quase indomável.

Por outro lado, estas linhas negras podem também representar o movimento e a vitalidade das plantas, especialmente dos cactos. Capturam a essência do seu crescimento, que apesar de muitas vezes impercetível é constante e dinâmico. É uma forma de expressar a natureza viva e em constante transformação, que embora possa parecer estática está sempre a desenvolver-se e a evoluir.

No entanto, e independentemente disso, as linhas negras em "Flores de Cacto" são, acima de tudo, um elemento visual fundamental que vincula a obra ao meu pensamento artístico. Representam os limites que o artista impõe à sua tela, as fronteiras entre o pensamento e a expressão. Porém, ao mesmo tempo, são um convite para olhar além dessas fronteiras, para perceber a obra como um todo integrado, onde cada elemento, seja uma linha negra ou uma mancha de cor, contribui para uma narrativa visual mais ampla e profunda.

 

Dado o rigor e até considerável complexidade técnica destes elementos da tua expressão artística, plasmados no original, como foi a tua experiência pessoal e com o ateliê CPS, em transmiti- los para a serigrafia?

O ateliê do Centro Português de Serigrafia é um lugar perdido no tempo, mas é muito bom por causa disso. Ou seja, tem um conjunto de pessoas que gostam do que fazem, que sabem o que fazem e, acima de tudo, têm um entusiasmo muito particular em responder às exigências dos artistas que trabalham com o CPS. No meu caso particular, a minha experiência é absolutamente positiva e entusiasmante. Eu gostei bastante. Gostei bastante porque não fazia serigrafia desde os meus tempos da Escola de Belas Artes. Já lá vão muitos, muitos anos. Eu já tenho uma certa idade, estive na Escola de Belas Artes há muitos anos atrás, no século passado, e nunca mais fiz serigrafia desde essa altura. Este convite do Centro Português de Serigrafia foi, de alguma maneira para mim, emocionante no sentido em que me permitiu voltar a trabalhar numa disciplina e numa área que já não experimentava há muito tempo e deu-me uma grande abertura para poder fazer outras coisas.

 

Clique na imagem para ver a série completa

 

No fim de contas, a serigrafia acaba por ser apenas um elemento da obra gráfica original que realizamos no CPS. Como te relacionas com o múltiplo de arte em geral?

A primeira coisa que é preciso dizer aqui é que eu acho importante a questão do múltiplo. Há artistas que, eventualmente, não lhe atribuem muita importância na sua carreira. É legítimo, tudo bem. Eu tenho uma perspetiva diferente. Eu gosto bastante da coisa do múltiplo, porque permite criar uma obra que tenha uma divulgação diferente junto do mais alargado setor de público e que permite chegar a muitas pessoas. Uma obra que vem com o carisma, a presença e o olhar do artista. Sendo certo que, enquanto múltiplo, pode ser colocado no mercado com valores acessíveis a pessoas que, sendo elas mesmo amantes de arte, ainda assim não têm a capacidade de poder aceder a obras originais. Mas, contudo, a criação de um múltiplo, seja ele de serigrafia, de gravura, de escultura, com edições de escultura, etc., de alguma forma alarga o território de relação entre o artista e seu público. É importante continuarmos a acreditar que os múltiplos são fundamentais para a construção de um público, para a educação de um gosto e para, não só, o alargamento da imagem desse artista, como também para a consolidação junto do público de uma prática de aceder a obras feitas por artistas que de alguma maneira têm uma qualidade que transforma o produto num objeto de interesse, se assim quiseres.

 

Pois, porque na realidade, devido ao patamar de distinção que alcançaste, quer nacional quer internacional, as tuas obras originais já não são de fácil acesso ao público geral.

Há uma coisa que se chama mercado de arte. Esse mercado de arte é um processo complexo e em permanente transformação. E é, digamos, o território de um turbilhão de circunstâncias, de ideias e de factos. Nunca saberemos bem classificá-lo. É sempre uma coisa que nos cria alguma perplexidade e que nos dá novidades que não estávamos à espera. É assim, a arte é, na verdade, uma mercadoria como outra qualquer, sujeita às leis do mercado e que vive e se desenvolve enquanto mercadoria dentro dessas leis de mercado. Leis essas que muitas vezes criam um afastamento irresolúvel entre as pessoas que gostam de arte e as obras do artista que estão no mercado. A produção de múltiplos é importante. Aliás, há uma história antiga da produção de múltiplos. Nos séculos XVII, XVIII, e por aí fora, havia uma prática instituída e consagrada de gravadores que, a partir das pinturas de mestres da época, faziam reproduções em gravura ponta seca, as quais eram vendidas, muitas. Ou seja, Tintoretto fazia uma pintura, Ticiano fazia uma pintura, o Da Vinci fazia uma pintura, o Raphael e por aí fora, Caravaggio... E havia uma legião de gravadores, muitas vezes até gravadores dos próprios artistas, aos quais entregavam com confiança os seus originais pintados em telas, que eram comprados no mercado pela Igreja, pela aristocracia, para os reis, ou pela burguesia compradora. Mas ainda assim havia a reprodução em gravura dessas obras, gravuras essas que eram depois disseminadas a preços acessíveis no mercado. Isso era muito agradável. Hoje em dia, este processo não acabou. Já não há essa norma de reproduzir obras de arte originais em métodos de reprodução mecânica, leia-se gravura, serigrafia ou outros. Mas o que há é que os artistas fazem obras específicas para serem reproduzidas por esses processos de produção mecânica.

 

Rafael Prates e Pedro Cabrita Reis. Atelier do artista, nov. 2023

 

A história do múltiplo de arte é, sem dúvida, bastante interessante e realça bem a sua importância. Tu próprio, tendo este interesse, tens a intenção de, como já referiste, continuar a explorá-lo em próximos projetos com o CPS. Talvez até, como já nos disseste, passando agora o protagonismo para a gravura.

A gravura clássica, entendida como uma metodologia e uma disciplina clássica. Sim, com certeza que sim. Gravura sobre cobre ou sobre chapa. Espero bem que a minha relação que comecei agora com o Centro Português de Serigrafia seja tão auspiciosa quanto eu espero e que possa alargar-se para outros territórios de disciplinas técnicas. E que um dia destes me veja tranquilamente no atelier de gravura do Centro Português de Serigrafia a fazer uns originais sobre cobre.

 

E dentro da cabeça de Pedro Cabrita Reis? Já há ideias a nascer para este próximo projeto?

Na minha cabeça está tudo a nascer ao mesmo tempo e sem interrupção. Em qualquer altura ou momento que se propicie esse meu reencontro com o Centro Português de Serigrafia, mas agora no ateliê de gravura, seguramente que vou ter imenso prazer em fazer, em produzir, gravuras que na altura se me ocorram como o testemunho do meu prazer em as estar a fazer.

 

Fotografia: Martim Cruz