Pedro Calapez
Jan. 5, 2023

Pedro Calapez

Entrevista

Pedro Calapez (n.1953) é atualmente um dos artistas de maior notoriedade da sua geração. O seu trabalho tem sido alvo de mostras em diversas galerias e museus tanto em Portugal como no estrangeiro, estando representado em importantes coleções como o Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia em Madrid, o Museu de Serralves, no Porto, a Fundação EDP, a Fundação Calouste Gulbenkian e a Coleção da CGD em Lisboa, ou o Central European Bank, em Frankfurt e o Chase Manhattan Bank em Nova Iorque, entre outras coleções públicas e privadas.

Entrevistámos o artista por ocasião das duas novas serigrafias realizadas para o CPS, "Os Sonhos de Fausto".

 

Depois da série anterior, "Apanhados", fala-nos um pouco desta nova série, “Os Sonhos de Fausto”.

Há uma certa continuidade em termos de processo técnico entre a série “Apanhados” de 2020 e esta série de 2022 que intitulei “Os Sonhos de Fausto”. Tudo tem a ver com ideias de trabalho concretizadas em séries. Geralmente surgem situações em que o processo básico de trabalho acaba por ter semelhanças, digamos assim, embora se trate de ideias diferentes.

Gosto de intitular os trabalhos, antes tivemos as “Variações”, “Muros”, “Janelas”. Depois os “Apanhados” e agora “Os Sonhos de Fausto”. Referências que recorrem ou que derivam do que vai passando pela minha cabeça em cada momento.

Estes títulos, que aparecem sempre à posteriori, não têm a intenção de determinar ilustrativamente as imagens criadas, mas há qualquer coisa que os trabalhos evocam e me faz intitular cada obra ou sequência de obras.

Relativamente aos “Apanhados” realizámos uma impressão a jato de tinta que depois foi coberta por uma última impressão que é feita manualmente, com uma espátula especial que acaba por arrastar uma camada de tinta sobre o que está por baixo. Simulando sempre o mesmo gesto, mas com resultados ligeiramente diferentes, estamos aqui quase no campo da monotipia. As imperfeições, ou melhor, as diferenças que se notam numa edição normal de gravura, pois há sempre pequenas situações de tintagem ou deslocação de papel, ou pequenas variações de pressão, aqui são talvez maiores, porque são o resultado do arrastar manual, num modo mais mecânico possível, da espátula ou do rodo sobre a superfície do papel. No entanto não considero que se trate de monotipias pois o lado de repetição está sempre muito presente desde a primeira camada de impressão.

  

 

Pedro Calapez, Série "Os Sonhos de Fausto", Serigrafia intervencionada com pintura pelo artista, 56 x 76 cm, 78 exemplares, 2022

 

Nos “Apanhados” há uma obliteração forte da imagem impressa em primeiro lugar, criando-se uma certa obscuridade, que restringe a nítida visão do que está por baixo. Já nos "Sonhos de Fausto" as duas camadas de tinta sobre a imagem inicial, obtida neste caso por serigrafia, provocam desfasamentos visuais pelas cores utilizadas e as suas transparências. Deveria agora referir que a primeira impressão, tando numa série como na outra, é obtida por desenhos e pinturas digitais, realizadas portanto no computador e, enquanto nos "Apanhados" a imagem é totalmente realizada digitalmente, nos "Sonhos de Fausto", é baseada em desenhos a tinta-da-china ou a tinta preta que provêm dos meus cadernos diários, sendo depois digitalizados e dimensionados no computador e desenvolvida uma visualização do resultado final, pela inclusão de camadas digitais de cor, permitindo estudar diversas opções visuais. Foram assim escolhidos dois desses desenhos e foram feitos de seguida, aqui no CPS, alguns testes em serigrafia. As duas cores manuais da segunda camada criam como que dois planos sobre o desenho, um desenho que sendo muito forte, de linha grossa e expressiva, revelando o “ter sido criado à mão livre”, é como um desenho proveniente de uma caneta ou pincel gigante.

 

Pedro Calapez, Série "Os Sonhos de Fausto", Serigrafia intervencionada com pintura pelo artista, 56 x 76 cm, 78 exemplares, 2022

 

A questão da série, que agora se inicia “Os Sonhos de Fausto”, tem a ver com leituras recentes do Fausto de Goethe e também do de Fernando Pessoa, embora no caso de Pessoa, o seu Fausto resultar da junção de múltiplas anotações e poesias deste, que acabaram por resultar duas ou três possibilidades de um livro, conforme o trabalho dos diversos investigadores, sobre a maneira de ordenar esses fragmentos. O Fausto de Pessoa não foi publicado como livro durante a sua vida. Mas as versões que temos hoje revelam a ligação com a ideia de procura, de ir aprendendo que a obtenção do conhecimento é tarefa ilimitada, e que não sabemos o que está para lá do “conhecimento total” e mesmo assim perceber que não se trata de uma procura em vão, mas uma procura que não tem fim.

 

Sim, é uma demanda infinita e que leva a uma outra questão. Em que medida o estado de vigília, entre o sonho e o despertar, é relevante para a tua criação visual?

Sobre o sono e o sonho, e do adormecer ao acordar muito se passa. De facto, é banal dizer-se que quando se acorda surgem ideias como soluções para o que nos preocupa. Adormeço muitas vezes a pensar como é que vou resolver determinado assunto, como é que se vai prosseguir o meu trabalho. Quer dizer que o meu cérebro ficará a funcionar para além dos atribulados sonhos que me agitam todas as noites e de que pouco me lembro ao acordar, e que desse modo se obtêm caminhos imprevisíveis no processo criativo.

Daí, como este ambiente está presente no dia a dia das minhas leituras atuais, surgiu a ideia de usar este título, como se estas obras resultassem de um sonho.

 

E nesse estado, nem estás desperto nem estás a dormir, e aí há uma possível resposta para as tuas questões.

Eu quando acordo lembro-me realmente, como a maioria das pessoas, do final dos sonhos, mas depois tudo desaparece e já não me lembro da história que me surgia clara no lento abrir dos olhos. Quando se acorda durante a noite quero por vezes adormecer novamente, continuando a história que estou a sonhar. Acontece-me isso muitas vezes, mas às vezes consigo continuar, outras não. As ideias ao acordar, umas são boas, outras não servem para nada (risos). Mas de qualquer modo são ideias, nós acabamos por andar à volta destas situações que acabam por pertencer ao processo criativo. Fazem parte, não são determinantes, não são o seu cerne, mas pode-se dizer que por vezes em muito me ajudam.

 

Pedro Calapez no Atelier CPS. Intervenção manual com pintura nas serigrafias previamente impressas.

 

Lembrei-me do “Guardador de Rebanhos”, do dia triunfal do Fernando Pessoa, uma situação similar em que ele escreveu de uma ponta à outra todo esse fabuloso livro.

Claro. Por curiosidade fiz uma série de desenhos e criei uma espécie de texto poético retirando seletivamente alguns versos do “Guardador de Rebanhos”. Portanto, este lado de usar os livros, que tem a ver com o pegar em coisas que inesperadamente me interessam, onde às vezes é apenas uma palavra ou uma linha que me deixa parado, é para mim mais importante do que ter um envolvimento total com determinada obra, poema ou estrofe. Mas não é isto mesmo o que nos faz de ler poesia?

 

Partindo aqui dos “Sonhos do Fausto”, o resultado também é um carácter indefinível, ou seja, as obras não têm uma nomeação, não têm tempo.

A ideia é que há um desenho e o desenho está no limite entre o que é abstrato e o que podia representar qualquer coisa e essa qualquer coisa vai de um objecto, a uma paisagem. Ou o sentido de construção: há uma construção na união ou circulação das espessas linhas, mas tudo se transforma nos planos de cor que escorrem por cima. No desenvolvimento do trabalho foi engraçado explorar duas situações diferentes - como sabes se tivesse tempo tinha feito uma série de pelo menos 10 serigrafias diferentes para ser, como tu dizes “intervencionadas”.

Quando se olha uma e outra, no caso destas duas edições que agora terminámos, percebe-se bem que o efeito visual é completamente diferente. Enquanto uma é “noturna”, onde os azuis se continuam um no outro e criam um certo ambiente de obscurecimento, não diria espiritual, mas de reflexão introspetiva, a outra é “festiva”, muito mais contrastante e vibrante, é um contraste intenso entre duas cores. A cor acaba por estar a perturbar e quase a contrapor-se ao fundo. O desenho em impressão serigráfica. É esse o jogo, não é preciso complicar muito, há um trabalho que é visual e é no sentir das tensões entre os seus diferentes elementos que se estrutura cada obra. Os diferentes planos, o plano da serigrafia e o plano das duas cores estão visualmente em locais diferentes e o modo como se olha e como se vê essas diferentes movimentações da superfície caracteriza distintamente cada uma destas duas novas obras.

 

Apesar de não haver essa complicação, de certa forma estas obras vão-se depois projetar também no espectador e em cada espectador de forma distinta, portanto estas obras vão ter continuidade do olhar.

Claro, eu acho que esse é o objetivo da obra de arte. Uma obra de arte que não funciona só pelos sentidos, no entendimento que no imediato as cores excitam o nosso olhar. O que eu pretendo conseguir é que as imagens que eu vou produzindo, primeiramente em mim, porque estou a fazê-las, porque as estou a descobrir, sejam olhadas e que esse olhares consigam ligar-se a maneiras de pensar, que estas imagens provoquem dúvidas que sejam produtivas para pensamento de cada um. E isso provocará, como tu dizes reações diferentes. Não é uma história que se conta, esta história que as imagens contêm em si são definitivamente outra história.

 

Sessão de numeração e assinaturas das obras com verificação final

 

É um processo de continuidade, seguramente e que pode ser geracional. E aqui pegamos um pouco no universo dos Sócios do Centro Português de Serigrafia onde já temos filhos e netos de Sócios mais antigos e que vão olhar as mesmas obras ou as obras anteriores dos pais e dos avós de uma outra forma e vai permanecer essa transmissão. Daqui surge outra questão. Que importância atribuis ao múltiplo ou à obra gráfica, considerando que têm um espectro mais alargado de espectadores?

O cerne da obra gráfica que é a sua multiplicação, é atingir um maior número de pessoas, pois para além de poderem ver uma obra num museu, poderão ter uma obra em sua casa, que podem olhar dois segundos todos os dias. E como somos todos pessoas diferentes e também não gostamos todos das mesmas coisas, juntando as essas diferenças geracionais, de pai, filhos e netos, implicam que há sempre no fundo alguma coisa que a todos tocará, pois mesmo quando vês uma obra que não te interessa muito e te está a pôr problemas, te está a questionar, ela está assim a cumprir a sua função. É o mais importante.

Esta atitude que o CPS tem, de formação de gerações, tem pelo menos um mérito enorme, pois passou, mais do que uma determinada imagem de pais para filhos, um ensinamento do olhar, um questionamento individual e coletivo.

O múltiplo, a obra gráfica é para mim tão válida como qualquer outra forma de expressão plástica, como um original que é único e de que não há cópias. Hoje há cópias de tudo porque tudo se multiplica também, isso tem a ver com as imagens que nós vemos nos telemóveis, na televisão, nos videojogos. São imagens que estão para nós disponíveis, livres. Há determinadas obras que só podem ser vistas no museu, mas essas obras acabam por ter, na atualidade, uma divulgação tão extraordinária através dos meios eletrónicos, que provocam uma apetência imediata para aceitar que uma obra não tenha de ser única, ela está disponível para muita gente, ela faz parte do museu imaginário que criamos em nós. Pelos muitos suportes mediáticos existentes ela transmuta-se em objeto.

No caso das serigrafias e das gravuras a multiplicação pelo número de edição provoca necessariamente uma acessibilidade em termos de valor, que democratiza mais ainda a questão da sua acessibilidade.

 

Nós, como sabes, as edições são irrepetíveis na perspetiva de valorização futura.

Nada já hoje é irrepetível (risos), desde o momento em que elas aparecem numa revista ou foram fotografadas numa mensagem de telemóvel, …

 

A sua imagem não será irrepetível, mas as edições, prende-se obviamente com a nossa deontologia, são irrepetíveis e enquadramo-las na chamada obra gráfica original, que no fundo o artista, como é o teu caso, é desafiado para fazer um projeto que é o original para ser múltiplo.

Penso que há apenas um caso em que aconteceu ter feito um desenho e ele ter sido reproduzido muito semelhante ao desenho original. As minhas serigrafias, gravuras, não têm um original que as produziu, o original é a própria gravura, pois ela foi originada no próprio processo gráfico, ela foi construída e a reprodução é a imagem que se faz por um processo mecânico. Muitas vezes se vê que há uma imagem e depois a sua reprodução. Não estou a dizer que há mal nisso, muitos artistas fizeram desenhos e depois eram assinadas duplamente, pelo autor do desenho e pelo autor da sua transcrição para o processo mecânico. Matisse tinha um processo: nalguns desenhos que fazia, utilizava um lápis específico de tal modo que, neste caso, um litógrafo, os transcrevia através de um processo penso que de decalque para a transferência para a pedra.

O que eu quero dizer é que há sempre muitos intervenientes no processo e que isso não diminui a qualidade do resultado, desde que devidamente controlado pelo artista. Na maioria das obras que faço, essa reprodução – já é difícil falar de original quando os originais são obras digitais – está desmaterializada porque é neste caso um desenho eletrónico, que se transforma para ser impresso. Há colecionadores que dizem “eu tenho o original que deu origem a esta edição”. No meu caso isso é uma situação difícil de concretizar.

 

No fundo a arte e neste caso específico das nossas edições, elas vão-se dirigir a um público mais jovem, o que é que gostarias de transmitir aos colecionadores e apreciadores da tua obra, pensando mais nos mais jovens, de certa maneira, pensando na continuidade e no futuro do olhar?

Não gosto muito de fazer a distinção entre jovens e menos jovens, pois é-se jovem em qualquer idade. A noção de juventude deveria incluir a predisposição para aceitar o novo, para se questionar perante aquilo que nãos se está a entender, para aceitar e tentar ligar-se com aquilo que se está a ver: a juventude do olhar passa por estas condições. Dá para começar em qualquer idade. É claro que quanto mais tempo tiver para se deslumbrar perante aquilo que se está a ver é que é o mais importante. Quanto mais essa prática for feita de um modo natural e sem pressões de qualquer tipo, mais estamos perto da “função” que a arte deverá ter. Nesse sentido, os “jovens” colecionadores serão aqueles a quem eu me dirijo sempre.

 

Entrevista por João Prates, Dezembro, 2022